Jamais serei como as folhas secas que caem mortas no chão... Voarei por entre os ciprestes e chegarei a um lugar onde talvez ninguém me encontre, não importa. Recuso-me permanecer no ponto de partida; prefiro a solidão à mesmice.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Série A

Desejava-o. Abriu a porta da geladeira e bebeu água. Direto da boca da garrafa, sem nenhum pudor.Enxugou a boca, a água escorria por seu pescoço, refrescando-a.
Ele assistia à partida de futebol e não desejava nada mais que terminar sua cerveja e comemorar a vitória do seu time. Ela abriu um livro qualquer, não sabia se era um guia de viagem ou um dicionário, não conseguiu se concentrar. Levantou-se e ofereceu-lhe um pratinho com castanhas-do-pará, suas preferidas. Ele aceitou e deu-lhe um beijo indolente, sem olhá-la, fixando o monitor brilhante da tv hipnotizado pelo verde do gramado e pelas meias brancas que saltitavam. Ela deixou-se levar pela figura de seu braço forte delineada pela manga curta da camiseta colada ao corpo e suas pernas atléticas que saíam da bermuda displiscente; pelos cabelos desalinhados e pela fina barba que começava a despontar em seu rosto duro. Desejava-o. Mas ele não percebia. Ela pensou em confessar que precisava desesperadamente amá-lo. Mas desejava-o a tal ponto que teve medo do seu julgamento. Pareceria leviana.
Respeitou os sagrados quarenta e cinco minutos do marido e refugiou-se no banheiro. Lavou o rosto e pensou nele. Pela fresta da porta observava-o. E como estava sexy naquela manhã! Havia nele algo de despretensioso, algo que mexia com ela. Ele nem percebia sua presença, concentrado no jogo, vociferava contra o juiz por estar perdendo de 1X0. Ela abandonou-se ao prazer solitário que uma mulher encontra quando se sente ignorada. A visão prosaica do seu homem bebendo sua cerveja, concentrado, com seus olhos azuis fixos na tv, levou a solitária mulher ao ápice do gozo, em poucos segundos ela se contorcia e o time dele fazia o primeiro gol. Ambos gritaram, ele quase chorou ao ver o timão empatar e ela sorriu, como se ele a tivesse possuído.
E assim criaram uma espécie de ritual insconsciente, ele feliz por que ela o deixava sozinho com sua partida de futebol e ela entregue às carícias solitárias enquanto o admirava. Não se soube que estranho sortilégio brotava entre os dois, mas desde aquele mágico domingo, seu time do coração ganhava todos os jogos e a relação dos dois ficou perfeita. Felizes e satisfeitos faziam amor todas as noites, ela parecia insaciável e o time do marido nunca mais foi rebaixado.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Sorriso de Lata




Seus olhos fitavam o chão muito tranquilos. Chegou assim como quem não quer nada e estendeu uma esteira na areia da praia. Achou bonito o grupo de pessoas vestidas de branco esperando com ânsia a chegada do novo ano. Permitiu que seus dois filhos brincassem em meio à multidão que eu também fazia parte e enquanto a massa conversava animadamente na orla, ela reforçou a frase: “vê se não vão pra longe, vocês podem se perder!” O menino correu com uma garrafa de sidra, da mais barata, pela areia fofa e com suas mãos pequeninas sacou a rolha de plástico do vasilhame já semi-aberto, gargalhando contente. A irmã puxou-lhe a orelha dizendo com a voz gasguita: “mainha disse pra você não abrir agora, seu burro!” E altiva tomou a garrafa para si, deixando o pequenino com ares de choro. Mas logo ele esqueceu as próprias agruras e pôs-se a correr com seu shortinho vermelho poído ao lado da irmã que sacudia as tranças negras.
Olhei para aquela mulher com curiosidade, era preciso ter muita coragem, no meio de pessoas tão elegantes que esperavam pela hora de abrir o espumante e pular as sete ondas de Iemanjá, para deitar-se displicente debaixo de um coqueiro como se estivesse na varanda da sua casa. Talvez ela viesse do interior e provavelmente não estava habituada aos costumes da cidade, pensei com meus botões. Quase ri do modo de como estava vestida e de como se comportava, achei peculiar, nada mais.
Os fogos encheram de beleza os céus da cidade empolgando a todos com seu espetáculo colorido. Eu, de alguma forma atraída por aquela pequena e solitária família, não pude deixar de notar o brilho nos olhos daquelas duas crianças vidrados no estourar da pólvora mágica, deixando-se transportar a um mundo de sonho e júbilo. A mãe, com o braço na tipóia, permaneceu sentada na sua esteira velha; parecia não ligar muito para o espetáculo de cores diante de seus olhos... aqueles olhos de uma tranquilidade que beirava o marasmo e a apatia, aquele olhar que me chamou a atenção.
Brindei com os meus e entre augúrios de um bom ano novo , paz e saúde, bebemos o champanhe francês e degustamos os queijos italianos enquanto a orquestra de um hotel qualquer tocava uma marchinha de carnaval daquelas bem antigas. Era um rèveillon como outro qualquer, mais um lugar comum, os mesmos desejos, os mesmos cumprimentos, as mesmas palavras... Olhei para o lado e percebi, saindo do meu mundo tão resumido e tão minúsculo, duas carroças de madeira cheias de garrafas pet e latinhas vazias de cerveja e refrigerante. Os olhos de sua proprietária continuavam na mesma mansidão morna, velando os filhos em sua esquálida existência, esperando que a multidão terminasse de se divertir para que ela, com sua melhor roupinha, remendada aqui e ali, mas muito distinta, recolhesse os restos descartados por aquelas pessoas que nem imaginavam a sua jornada. Desconheciam completamente a importância daqueles pedaços de metal para aquela família, ignorando o fato que o brilho do alumínio seria os trocados da manhã seguinte, transmutando-se em pão e leite.