Seus olhos fitavam o chão muito tranquilos. Chegou assim como quem não quer nada e estendeu uma esteira na areia da praia. Achou bonito o grupo de pessoas vestidas de branco esperando com ânsia a chegada do novo ano. Permitiu que seus dois filhos brincassem em meio à multidão que eu também fazia parte e enquanto a massa conversava animadamente na orla, ela reforçou a frase: “vê se não vão pra longe, vocês podem se perder!” O menino correu com uma garrafa de sidra, da mais barata, pela areia fofa e com suas mãos pequeninas sacou a rolha de plástico do vasilhame já semi-aberto, gargalhando contente. A irmã puxou-lhe a orelha dizendo com a voz gasguita: “mainha disse pra você não abrir agora, seu burro!” E altiva tomou a garrafa para si, deixando o pequenino com ares de choro. Mas logo ele esqueceu as próprias agruras e pôs-se a correr com seu shortinho vermelho poído ao lado da irmã que sacudia as tranças negras.
Olhei para aquela mulher com curiosidade, era preciso ter muita coragem, no meio de pessoas tão elegantes que esperavam pela hora de abrir o espumante e pular as sete ondas de Iemanjá, para deitar-se displicente debaixo de um coqueiro como se estivesse na varanda da sua casa. Talvez ela viesse do interior e provavelmente não estava habituada aos costumes da cidade, pensei com meus botões. Quase ri do modo de como estava vestida e de como se comportava, achei peculiar, nada mais.
Os fogos encheram de beleza os céus da cidade empolgando a todos com seu espetáculo colorido. Eu, de alguma forma atraída por aquela pequena e solitária família, não pude deixar de notar o brilho nos olhos daquelas duas crianças vidrados no estourar da pólvora mágica, deixando-se transportar a um mundo de sonho e júbilo. A mãe, com o braço na tipóia, permaneceu sentada na sua esteira velha; parecia não ligar muito para o espetáculo de cores diante de seus olhos... aqueles olhos de uma tranquilidade que beirava o marasmo e a apatia, aquele olhar que me chamou a atenção.
Brindei com os meus e entre augúrios de um bom ano novo , paz e saúde, bebemos o champanhe francês e degustamos os queijos italianos enquanto a orquestra de um hotel qualquer tocava uma marchinha de carnaval daquelas bem antigas. Era um rèveillon como outro qualquer, mais um lugar comum, os mesmos desejos, os mesmos cumprimentos, as mesmas palavras... Olhei para o lado e percebi, saindo do meu mundo tão resumido e tão minúsculo, duas carroças de madeira cheias de garrafas pet e latinhas vazias de cerveja e refrigerante. Os olhos de sua proprietária continuavam na mesma mansidão morna, velando os filhos em sua esquálida existência, esperando que a multidão terminasse de se divertir para que ela, com sua melhor roupinha, remendada aqui e ali, mas muito distinta, recolhesse os restos descartados por aquelas pessoas que nem imaginavam a sua jornada. Desconheciam completamente a importância daqueles pedaços de metal para aquela família, ignorando o fato que o brilho do alumínio seria os trocados da manhã seguinte, transmutando-se em pão e leite.
Perguntei-me onde estaria o marido daquela mulher. Talvez ele nem existisse, talvez a tivesse abandonado grávida de poucos meses, ou estivesse bebendo em alguma biboca suspeita e chegasse em casa embriagado e cheirando a outra mulher, sem sequer se preocupar com a sorte dos filhos... Passei alguns segundos imaginando o que poderia ser ou o que fora a vida daquela senhora que continuava impassível esperando pacientemente o fim da festa para poder finalmente aproveitar aquele dia especial. O que ela presenciaria até o amanhecer? Bêbados trôpegos caminhando pelas ruas, o ranço do final das comemorações no desmontar das barracas de churrasquinho e quinquilharias? Carros da polícia abandonando seus postos dando lugar aos poucos automóveis que recomeçam a transitar na avenida? Ela teria que ser rápida e ágil; deveria competir com os garis que cedinho estariam a postos varrendo tudo o que encontrariam pela frente, sem nada perdoar, nem mesmo as latinhas que para ela eram como ouro.
Fiquei pensando em muitas coisas enquanto observava aquela mulher e enquanto eu refletia, ainda sob os gritos de viva dos demais que comemoravam a virada do ano, ela me olhou, com aqueles mesmos olhos mansos de antes, mas dessa vez bem mais serenos, muito mais ternos... Olhou para a minha expressão alheia e sorriu. Foi o sorriso mais franco que eu já vira em toda a minha vida, um sorriso sincero e sem pretensões, gratuito e amável, como o sorriso de uma criança que ganhou um doce muito apetitoso.
Amigos e familiares me chamaram para continuar as comemorações do réveillon, mais garrafas de champanhe estouravam, as rolhas saltavam sob nossas cabeças, e eu, mesmo com a imagem daquele sorriso tão puro, me deixei levar pela algazarra e pela festa da multidão. Perdi de vista aquela família e senti mais tarde o gosto amargo do arrependimento. Eu poderia ter dado um abraço naquela mulher ou ter feito um agrado nos meninos, poderia ter dado algum dinheiro para ajudá-la ou ter oferecido um prato de comida. Mas eu não fiz nada disso, não me aproximei, julgando ser uma cena prosaica, mais uma das tantas situações cotidianas que nos aparecem todos os dias, não fiz nada. Tive receio, não sei bem do que, talvez medo. Medo de me expor e de me comover com os sentimentos alheios, tive medo daquele sorriso tão doce, tive medo de mim mesma que tantas vezes sou incapaz de sorrir, que por motivos tolos fecho a cara e resmungo, que fecho a boca e não cumprimento, que saio de cara amarrada sem saber porque... Por puro medo, acho. Percebi que o que eu via ao meu redor não eram números ou coisas, mas pessoas. Mesmos as desconhecidas, as más, as desonestas,as desagradáveis, todas elas têm uma vida, têm uma alma e podem regalar um sorriso de vem em quando.
E com esse travo na garganta mergulhei no novo ano, como quem se avizinha a um precipício. Joguei-me de cara nas minhas angústias e percebi que uma delas era a cegueira que me acompanhava desde a minha mais tenra infância. Nunca prestei atenção nos sorrisos, nos rostos, na vida ao meu redor. Eu era uma pessoa dura, incapaz de articular um gesto simples como aquele sorriso sem ter algum motivo para fazê-lo. E quando eu sorri para o rapaz que alugava as mesinhas na beira da praia, ele me retribuiu e prometeu que da próxima vez teria refrigerante sem açúcar no menu das bebidas. Agradeci, assim sem mais nem menos fiz amizade com aquele rapaz simples. Sua pele mais escura que o ébano-da-índia, transpirava calor e gentileza. Fez-me até um desconto e disse um “volte sempre” sincero e acolhedor. Provavelmente eu não voltaria, decerto jamais reencotraria a catadora de latinhas nem veria a alegria dos seus filhos livres correndo pela praia no único dia em que podiam parar e conteplar a beleza de um espetáculo, num dia em que sua mãe deveria descansar,mas era impelida a continuar batalhando a “mistura” de cada dia. O resto do ano que estava apenas começando seria duro para ela, como deve ter sido o ano passado. Descrente e exausta, ela poderia fechar a cara para o mundo que a rejeita e a ignora, mas ela me sorriu e me desarmou e eu fiquei pensando que o mundo não era tão ruim assim, que alguém ainda era capaz de uma gentileza. Voltei para casa tentando entender porque não correspondi ao seu sorriso e sentindo-me uma pessoa vil abri a sacola com o que sobrou do rèveillon e achei uma latinha amassada de guaraná.
No dia seguinte voltei ao calçadão. A grande avenida quase deserta banhada pelo sol quente do meio-dia me fez relaxar. Sentei-me junto à uma barraquinha de coco e olhei ao meu redor, apenas alguns transeuntes ainda de ressaca e os últimos garis que terminavam seu árduo trabalho conteplavam junto comigo a beleza daquele lugar. Apoiei a latinha ao lado de um coqueiro, assim meio como quem não quer nada, abandonei-a ali. Talvez a catadora voltasse, talvez ela visse o meu presente, talvez ela nunca recolhesse aquela lata... Fui embora deixando aquele pedaço de metal retorcido brilhando sob o sol forte, certa de que ela entenderia o meu remorso e que aquilo era o sorriso que eu não dei.
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