Jamais serei como as folhas secas que caem mortas no chão... Voarei por entre os ciprestes e chegarei a um lugar onde talvez ninguém me encontre, não importa. Recuso-me permanecer no ponto de partida; prefiro a solidão à mesmice.

segunda-feira, outubro 26, 2009

Pérfidas (TEATRO)






A casa das irmãs Tavares de Albuquerque não era mais a mesma. A sala escura e úmida, iluminada apenas pelo lume de algumas velas esparsas, seguia fria e soturna – um túmulo de pessoas vivas – encarcerando o desespero de três mulheres falidas e abandonadas pela sorte. É noite, e uma das habitantes da caquética morada, que um dia fora um palacete frequentado pela fina flor da sociedade, lembra às companheiras de amargura a sua presença, com um grito pavoroso:



-Mariaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!


-O que foi Teodora, pra que essa gritaria, sua louca?! –Xingou Inês, segurando a faquinha que usava para descascar uma laranja murcha.


-Eu já disse mil vezes à Maria pra não deixar as janelas abertas à noite, não quero pegar um resfriado!


-Esqueceu-se que não tem mais nenhuma Maria aqui? Eu a mandei embora, é passado; não temos mais como pagar uma empregada!


-Você mandou embora a criada? E agora, quem vai limpar a poeira, quem vai preparar o meu suflê de pescado? Minhas blusas de seda tem que ser lavadas à mão! Como ousa demitir a minha empregada, sua intrometida!!! – Rosnou Teodora, a mais nova das irmãs, tentando demonstrar dignidade com a velha camisola importada e os gastos chinelos franceses que acomodavam seus pés delicados. Lembranças de um tempo abastado e glorioso.


-Mas será que ninguém pode mais dormir nessa joça? Porque essa gritaria, suas gralhas?! – A voz de Cecília ecoou pela sala úmida com estrondo, corroborando sua empáfia de irmã do meio. – Toda noite é a mesma coisa! Por que estão brigando agora, por comida? Saibam que eu dividi o mingau igualmente e deem-se por satisfeitas, amanhã vai ter batatas cozidas e só!


-Você sempre foi péssima cozinheira, Cecília, mas será possível ?! Vou até o banco amanhã bem cedo, tiro o dinheiro da poupança e chamo a Maria de novo. Não podemos ficar à mercê dos seus desastres culinários, minha irmã!
-Qual poupança, criatura? Não temos mais um tostão furado!


-Eu já disse à essa demente que não temos mais condições de manter uma empregada, Cecília. – Continuou Inês apertando a laranja com força, prendendo a respiração para não avançar na irmã fútil.


-Não precisa falar assim com ela, Inês! Ela não é demente, apenas não aceitou o....


-O que Cecília? O fato de estarmos na miséria? De não termos mais empregados para nos servir? De sermos obrigadas a viver um eterno clima de velório por não termos como pagar as contas de luz? Ah, como odeio essas malditas velas... Mal temos dinheiro para comer! Talvez essa retardada ainda não tenha notado a nossa situação, ela sempre foi meio lerda mesmo. A nossa querida casa está hipotecada e em breve seremos despejadas! Deu pra perceber que papai morreu deixando somente um monte de dívidas e a vergonha de viver o resto de nossas vidas como mendigas?!


-Vocês estão mentindo! Não é possível que a nossa poupança esteja a zero! Vou ligar para o Roberto, ele sim entende desses assuntos financeiros, vai me ajudar. Tão inteligente o Roberto... – Os olhos de Teodora brilharam, a esperança cobriu sua alma ao recordar as qualidades do noivo .


-Sua louca! Maldita demente! Não vê o que está acontecendo à sua volta? Não há mais nenhum Roberto, ele abandonou você no altar, esqueceu-se? Você é uma criatura fútil e egoísta, só se preocupa com seu maldito bem- estar! Entenda, você está sozinha, querida! Sem amigos, sem homem, sem pai nem mãe e pobre, entendeu? Pobre!!!
-Você está com inveja, porque eu sou mais jovem e mais bonita do que você, sua despeitada! Fui eu que tive a maior festa de noivado da cidade, o vestido mais caro feito com renda francesa legítima, uma legião de admiradores que se curvavam aos meus pés! E você, que vida teve até hoje? Viajando sempre sozinha, frequentando aqueles inferninhos fétidos, fumando sabe-se lá o que com aqueles pseudo amigos lunáticos… O fato è um só, minha querida, ninguém nunca a suportou! Os homens olhavam pra mim e para o meu corpo perfeito, não para você com essa cara de peixe morto. Meus amigos eram todos loucos por mim, porque eu era a mais simpática, a mais extrovertida, a mais bela; nunca fui apática e sem sal como você! Se a inveja a corrói, minha cara, não è culpa minha!


Cecília percebeu pequenas bolhas de ira subir pelo pescoço de Inês. Imaginou pequenas aranhas peçonhentas saindo de sua boca amargurada. Teve medo que resquícios de “águas passadas” viessem à tona para inundar ainda mais o enlameado destino das três.


-Inês, querida, não ligue para as bobagens da Teodora. Esqueçamos o passado, o que você tem que entender é que…


-Como tem coragem de dizer que eu tenho inveja de você, sua….sua…piranha! – Inês gritava com fúria, molhando o rosto da irmã com pequenas gotículas de saliva e fel.


-Não adianta me insultar, cara irmã, a verdade é uma só: eu sempre fui linda e você nunca suportou isso. Pensa que não sei da inveja que sempre sentiu de mim? Dos seus sorrisos entrecortados quando eu quebrei a perna e não pude ser a rainha do milho na escola? A raiva que você sentia quando o papai me colocava no colo e nem ligava pra você? Você sempre foi pérfida, Inês, nunca prestou! – Retrucou Teodora no segundo degrau da escadaria, equilibrando o pequeno castiçal que levava na mão direita.


-Linda você? ! Meu Deus o quanto é pretensiosa. Faz-me rir!


-Linda sim, e todos os rapazes caíam aos meus pés e nunca olhavam pra você, por isso o seu ódio por mim. Quer que eu refresque sua memória? Lembra daquele joalheiro espanhol, o Pablo Lablanca? Ou ainda o Carlinhos Paes de Sá, aquele Marchand elegantíssimo? Ou seria melhor relembrar o Fernando Benevides Maciel? Isso sem falar nos irmãos Macedo de Alcântara, todos dois loucos por mim, até brigaram pra ver quem ficava comigo. E o Roberto então... Com aqueles olhos azuis, aquele corpo de Apolo….. Pode sonhar meu bem, porque um corpo atlético como o dele você não vai ter nunca!


-Meninas, por favor! Vamos dormir que è tarde. Não tem cabimento que fiquemos aqui discutindo essas besteiras. – Atalhou Cecília, tentando voltar ao quarto e esquecer que o mingau forrara tão precariamente seu estômago.


-Besteiras? Você chama os insultos dessa daí de besteiras, Cecília? Logo você que sempre foi a mais sensata da família! – Gritou Inês voltando-se novamente para Teodora. – Escute aqui sua fedelha, abra bem essas suas orelhas imundas porque eu não vou repetir. Você ficou plantada naquela igreja esperando por aquele playboyzinho de uma figa, fazendo a figura patética da noiva abandonada perante toda a sociedade. Pensei que depois daquele dia você fosse baixar a crista, mas vejo que continua a mesma leviana de sempre!


-Sua solteirona amarga! Você precisa é de um belo macho que lhe mostre o que é bom! Se bem que vai ser difícil, vestida com aqueles trapos horrendos que costuma usar, quem è que vai olhar pra você? Papai tinha razão quando dizia: “Inês é o pilar dessa casa”. Você tinha que ter alguma qualidade que suprisse a falta de beleza! Não sei o que ele via em você, sempre foi um fraco!


-Não fale assim do meu pai, sua víbora! Bata na boca antes de falar daquele santo homem!


-Inês, Teodora, por favor! Respeitem ao menos os mortos! – As batidas aflitas do coração de Cecília podiam ser ouvidas do outro lado da rua.


-Santo homem?


Ora, que piada. Você mesma acabou de dizer que ele nos deixou na miséria! Estamos arruinadas, adeus festas, reuniões no clube, viagens ao exterior… estamos condenadas a viver uma vidinha medíocre contando os trocados! Olhem para essa casa, não é nem a sombra do que foi um dia. E agora vocês ainda vem me dizer que não temos mais nem um tostão na poupança! Onde está o dinheiro que papai deixou pra mim?


-Pagamos os advogados, Teodora, compramos comida. Não se zangue com o papai, ele fez o que pôde quando vivo. – Cecília com sua habitual mania de pôr “panos quentes” nas situações tensas, tentou acalmar os ânimos das irmãs briguentas.


-Fez o que pôde? Você acha mesmo que aquele velho fez o que pôde? Ele deve estar rindo junto com a mamãe lá do outro lado... Olhem para mim, faz séculos que não faço as unhas, que não chamo meu massagista, que não compro roupas! E tudo isso por causa dele! Pois que queime no inferno, ele e suas boas intenções!


-Maldita cobra! Como tem coragem de falar assim de alguém que já morreu? – Gritou Inês balançando a faca que levava na mão. – Ele sempre lhe quis bem, você devia se envergonhar!


- E ele o que fez? Pôs três filhas no mundo, acostumou-as com o luxo e as comodidades pra depois abandoná-las assim, na miséria! Maldito seja!


Inês não pôde mais segurar todo o rancor que tinha guardado pela irmã durante todos aqueles anos. Teve vontade de esganá-la, mas nenhuma agressão física poderia ferir tanto a irmã quanto a frase que tinha em mente.


-Ele pôs apenas duas filhas no mundo, meu bem.


-Inês, por favor, não! –Cecília gritou, tentando reverter a ferocidade daquelas palavras, mas era tarde demais, não havia como remediar tamanho estrago.


-O que você está inventando agora, sua peste?!


-Nada, Teodora, ela só estava brincando... Inês pelo amor de Deus, baixe essa faca, mulher!


-Vamos fale sua velhaca, o que quer dizer com isso? 10 jul excluir Ilka Canavarro


– Teodora estava pálida, seus olhos queriam sair das órbitas, o sangue parecia não chegar à sua cabeça. Chegou perto da irmã para poder vê-la melhor em meio à penumbra da sala.


-Você nunca teve talento pra nada, sempre foi burra e fútil. Veja a Cecília, fala cinco idiomas, já viajou o mundo trabalhando, uma mulher polivalente. Ficou viúva cedo, coitada, entrou em depressão, mas sempre foi uma mulher batalhadora. Eu organizei várias festas e eventos importantes na minha vida, lidei com várias personalidades nos meus tempos de promoter. Cansei da vida mundana e parei, mas sempre trabalhei. E você? O que você fez? O que você é? Uma sanguessuga que sempre viveu agarrada na barra da saia da mamãe e nas costas de papai. Uma inútil, sem nenhum talento. Lógico, você não tem o nosso sangue. Você deve à papai a sorte de ter sido registrada por ele, você hoje è uma Tavares de Albuquerque graças ao seu bom coração.


-Sua bruxa! Não è verdade, você tem inveja, sua lacraia! – Teodora gritava com lágrimas nos olhos. A raiva e a incredulidade apoderaram-se de seu corpo, fazendo a chama da vela tremer bruscamente.


-Pensa que eu não lembro do dia em que papai trouxe você pra casa? – Continuou Inês balançando ainda mais a faca na mão nervosa. – Tão raquítica, que mais parecia um rato molhado. Nem sei de que buraco ele tirou você, só disse que estava fazendo um favor à um amigo. Você è adotada, querida. A-d-o-t-a-d-a, entendeu? Nunca foi e nem nunca será nossa irmã! – Inês sorriu, eram anos que ela levava esse segredo entalado na garganta. Não suportava mais os achaques da irmã mimada. A situação de penúria em que se encontravam fez ferver os ânimos e a mais velha das três saboreou finalmente o gosto explícito da verdade.


-Por que Cecília? –As lágrimas molhavam o rosto de Teodora que buscava alento nas palavras carinhosas da irmã do meio.


-Teodora, minha querida. Nós íamos lhe contar um dia… Não ligue pra Inês, lembre-se que as crianças adotadas são muitas vezes mais amadas do que os próprios filhos legítimos. Papai amava você, acredite. Ele nunca quis que você soubesse, não queria que se sentisse diferente…. Perdoe a Inês, ela tem o jeito dela de falar, mas ama você, como todos nós...A nossa caçulinha.


Após dar um beijo em Cecília, a moça adotada aproximou-se de Inês, que ainda bufava, ofegante com seu desabafo.


-Eu sei que você me quer bem, Inês. Somos irmãs, perdôo você....


Teodora abraçou-a, afagando-lhe as costas por cima do robe desbotado. As chamas da vela que ela segurava, propagou-se pelos cabelos de Inês que saltou para trás num grito de horror.


-Teodora, o que você fez!!!!!!!!


Cecília arrancou a cortina empoeirada da sala e correu para acudir a irmã que se debatia em meio ao fogo. Um baque. Com o empurrão de Teodora, Cecília caiu de cabeça na quina da mesinha de centro. Os candelabros espalhados pela sala foram jogados em cima dos móveis, o fogo se alastrava rapidamente sem fazer distinção entre as moças. Teodora agarrou a foto do pai e com a faquinha que caíra das mãos da irmã, abriu um pequeno corte no pulso esquerdo. Deitou-se no chão. Com o sangue que escorria no vidro da foto, ela sussurrou com um sorriso, antes que o fogo a consumisse por completo:


-Agora temos o mesmo sangue, papai.












Quanto me queres?


 


Quanto me queres?
Me queres tua?
Não esperes, senhor.
Me queres perdida?
Não creias, senhor.
Me queres enamorada? 
Me queres enternecida?
Porquê queres tudo e não queres nada?
Roubando-me a mocidade já perdida
Sugando-me a razão,
Sem me contar a verdade sobre a tua vida tacanha
Teus erros infames...
E me transportas a esse vão
Onde o teu desejo doentio  me desarma,  me domina
Me deixa sob as tuas mãos tortuosas
Portando-me à loucura e ao martírio
Penetrando-me com teu perfume prosaico
Violentando-me com tuas palavras atrozes e lascivas
Tão submissa
Gozando e odiando aquele átimo de intimidade
Alimento dos meus dias.
E mesmo abominando a tua pérfida presença
Não posso dizer que não te amo.
Quanto me queres?