Jamais serei como as folhas secas que caem mortas no chão... Voarei por entre os ciprestes e chegarei a um lugar onde talvez ninguém me encontre, não importa. Recuso-me permanecer no ponto de partida; prefiro a solidão à mesmice.

terça-feira, abril 20, 2010

Passa o peru



Através das finas paredes das casinhas de vila, rodeadas de mangueiras frondosas, ouvia-se mais uma vez as mesmas palavras:






–Vovó, passa o peru!

–Tome.

–Obrigado.

–Por nada, querido. Alguém mais?

–Sim mamãe, me passe o peru, obrigada.

–Pode me passar o peru também?

–Sim. Aqui está.

–Vou guardar o peru, alguém ainda quer?

–Não, vovó, obrigado.



O diálogo sobre o bendito peru na hora da refeição repetia-se todo santo dia. Naquela pequena vila de casas populares, os vizinhos não entendiam como aquela família humilde podia comer semelhante ave diariamente. Dizia-se à boca miúda que a vovó Adelina tinha sido uma moça muito rica e cortejada pelos homens mais poderosos da capital, mas por ter confiado no homem errado, havia perdido tudo, conservando apenas a dignidade. Via-se os restos da aristocracia em seus vestidinhos surrados. Notava-se de longe que aquele senhorinha de chapéu puído e luvas gastas ia à missa todos os dias com o que restara de seu passado pomposo. O genro de Dona Adelina fazia carregamentos na feira do bairro e sua esposa, lavava e passava para fora, ajudando a criar os dois flhos. Um parco dinheiro no fim do mês que servia para as despesas básicas. Impossível imaginar que aqueles operários comessem peru todos os dias.



O quitandeiro até que tentou espiar por cima do muro, mas na hora do almoço a família se trancava em casa e as janelas hermeticamente fechadas não permitiam que ninguém visse nada do que se passava lá dentro. Muito reservados, os componentes da família, não gostavam de falar de suas vidas, tampouco ouviam as fofocas dos vizinhos. Com a discrição que lhes era peculiar, continuavam a refeição:

– Mãe, passa o peru.

–Toma.

– Dá cá o peru.

–Dá pra me passar esse peru de novo?

Pouco a pouco a história do peru virou alvo da curiosidade local. Ninguém agüentava mais a ladainha do “passa o peru”, “me dá o peru”. Dona Cotinha, a fofoqueira-mor da rua, achava que a avó da casa ainda tinha uns cobres guardados debaixo do colchão e por isso podia se dar ao luxo de comer tão nobre carne todos os dias. Alguns concordaram em uníssono com a futriqueira, outros preferiram duvidar da honestidade do dono da casa: “Ele deve é estar roubando no emprego, isso sim! Onde já se viu, gente pobre se fartando de peru e ainda mais todo dia?!” E de boca em boca, de casa em casa, de vizinho em vizinho, o tema do peru deixou de ser privado para virar assunto de domínio público. Dona Cotinha ainda mais irritada ao pensar nas garfadas de carne suculenta que os malditos comiam todos os dias, reuniu mais de vinte vizinhos revoltados com a soberba da família e na praça afirmava que se duvidassem, muito em breve, eles estariam era comendo faisão.



Enquanto as mulheres ficavam somente na fofoca, Tonho, o feirante, decidiu partir para as vias de fato. Não era nehum moleque e não podia permitir de ser passado pra trás por semelhante gentalha. Fazia tempo que o dono da casa lhe estava atravessado na garganta, como um osso de peru. Cansado de espiar pelo muro e não conseguir ver nada, armou-se de dois vizinhos parrudos e com seus dedos atarracados caminhou decidido até a casa da família, como quem parte para a guerra. Enquanto adentrava sorrateiro pelo portão principal escutou a famosa cantilena:



–Passa o peru...

–Pois não.

–Também quero! Passa o peru pra cá!

–Alguém mais vai querer o peru?

E com os dentes trincados de raiva e a inveja corroendo-lhe a alma , Tonho esmurrou a porta com violência.



–Abram! Saiam daí ou eu boto essa porta abaixo!!



Os vizinhos aplaudiam a audácia do feirante. As mulheres gritavam, as crianças pulavam como macaquinhos selvagens ao redor da residência. Ninguém da família respondeu. O interior da da casa parecia desabitado.
–Olha só pra isso, estão se escondendo, esses avarentos! Eu sempre disse que esses daí não eram flor que se cheirasse!



–Tem razão, Dona Cotinha, eles nunca me enganaram! – Remendou uma vizinha de bochechas gordas e nariz descarnado.



A tensão aumentava, os homens insistiam em entrar na casa e levado pelo calor do momento Tonho, decidiu arrombar a porta. Com porretes improvisados e os próprios punhos deram início à violenta empreitada de invadir a morada alheia.



De longe via-se uma massa de homens nervosos e crianças barulhentas misturarem-se à pobre mobília da velha casa. Pratos espatifavam-se no chão, canecas de ágata voavam pelos ares enquanto os membros da família perseguida saltavam pelas janelas dos fundos, fugindo de um possível linchamento. O espelho da sala recebeu uma pedrada certeira espatifando-se em mil pedacinhos. A impassível anciã permaneceu em seu lugar, com a honra que recebera de seus antepassados, a fim de defender seu patrimônio. Paus e pedras dançavam no ar atingindo as paredes mofadas.



Os mais afoitos aproveitavam para saquear os poucos bens que a pobreza havia permitido àquelas pessoas. Nem mesmo a bengala gasta, feita em autêntico carvalho foi suficiente para proteger a velha da ira dos vizinhos. Com uma paulada invisível caiu com a cabeça esmigalhada no chão de cimento.



Como toda massa que se concentra em um momento de insanidade coletiva, a horda de revoltados se desfez em poucos segundos, diante da imagem rubra da cabeça da velha. À mesa destruída, a última e inacabada refeição: ovos cozidos e pão dormido.



Não havia mais o que procurar junto ao cadáver senil. Defendera a sua riqueza até o fim, agarrada ao seu paliteiro de prata em forma de peru.

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