Enquanto tomava meu café, comecei a folhear a minha querida revista de saúde e bem-estar estalando de nova. A capa brilhante com a foto de uma sílfide comendo uma suculenta melancia me deixou com vontade de ler o primeiro artigo. E ele era taxativo: Escovar os dentes após ingerir certos alimentos como café, refrigerante ou hortaliças escuras pode provocar cáries! Meu mundo caiu e a minha credulidade nas escolas elementares também. Então o que a tia Graça me ensinou durante todos esses anos era pura balela! E eu que corria pra escovar os meus dentinhos após as refeições! Bem, os doutores concluíram que o ácido de certos alimentos em contato com o dentifrício logo após a refeição pode provocar crateras lunares no esmalte dos dentes. Em suma, deveríamos esperar pelo menos meia hora até fazer nossa higiene bucal. Essas revistas nunca mentem, eu sei!
Deixei-me seduzir pelo apelo saudável da revista. O rapazote que vendia asinaturas me convenceu: “Um exemplar por mês, coisa de cinema, senhora. Uma revista super antenada, cheia de novidades sobre as mais recentes descobertas sobre a saúde”.Apaixonei-me pela idéia de virar uma mulher cheia de energia e vitalidade. Mas até que ponto nossas vidas tem de mudar em nome das novas descobertas científicas?
Isso me faz lembrar do caso do marido de uma amiga, um homem pacato e educado a quem Amália, a minha querida amiga enchia de amor e dedicação. Lembro-me como se fosse hoje do doce despertar numa manhã de segunda-feira em sua casa. Eu, como hóspede numa casa minúscula e de paredes finas presenciei o seguinte diálogo:
– Zefa, traz o leite do Doutor Alcides! Toma, meu bem, está bem quentinho.
– Leite de soja de novo?
– O médico disse que você tem intolerância à lactose, lembra?
– Lembro, mas...puro de novo? Sapeca aí um pouquinho de café. Zefa, tráz o café!
– Melhor não, amor, por causa da gastrite. Já pensou se a próxima endoscopia dá o H.Pylore positivo? Deus o livre! Melhor tomar só o leite mesmo.
– Um pouquinho de chocolate em pó pelo menos? Só pra dar um gostinho.
– Só tem o Nescau das crianças, tem açúcar, sua glicose anda alta, melhor não.
– Passa o pão e a margarina, então.
¬– Toma, pão de arroz com ricota. Você não absorve bem o glúten, fica cheio de gases e a margarina não faz bem pra quem tem colesterol alto.
¬– Aquela ricota sem sal de novo?
¬– É melhor não abusar do sal, querido...olha a pressão. E depois faz mal ao rins. Lembra daquela matéria que lemos semana passada? Sal é um veneno!
– Sei.... Deixa eu provar esses biscoitinhos aí, de que são?
– De baunilha recheados com chocolate, mas são dos meninos, são calóricos, é melhor que você não coma. Depois engorda, já pensou no diabetes? Seu pai sofria disso, melhor não dar sorte pro azar.
– Uma vitamina de banana então, me deu vontade... Zefa, faz uma vitamina esperta aí pra mim!
– Ai bem, você sabe que banana te dá prisão de ventre, melhor não.
– Hum...traz um iogurte então, Zefa!
– Esses daí te dão diarréia. Já pensou se você tem um ataque de dor de barriga no meio de uma reunião?
– Porra, mulher! Puta que pariu! Se eu tivesse morto estaria melhor! Isso lá é vida?!!!
– Alcides, por favor!!! O que deu em você? Falar essas coisas nas frentes das crianças!! A gente já tinha decidido de não falar palavrão dentro de casa. Controle-se! Não vai fazer bem para a construção moral delas... Vamos, acalme-se tome o seu leitinho de soja, é pro seu bem, querido.
– Eu não quero essa merda de leite de soja. Tô de saco cheio! E vocês o que estão olhando?
– Nada papai, o senhor tá nervoso.
– Tô nervoso uma ova, tô de saco cheio de toda essa bosta!
– Alcides! Você tomou seu remédio para a tireóide hoje? Aposto que esqueceu, essas mudanças bruscas de humor....
¬– Caralho!
Confesso que por um instante achei a minha amiga uma espécie de Torquemada moderno e tive pena do Alcides. Ele se levantou como se fosse um touro raivoso. Jogou o guardanapo de lado e xingou a mulher, os filhos e a empregada com nomes tão feios que eu prefiro não relembrar o desgostoso momento. A campainha tocou no exato momento em que Alcides pegava as chaves do carro para sair. Era o síndico do prédio, fumante inveterado.
– Alcides, meu bem, por favor vá conversar lá fora. Toda essa fumaça não vai fazer bem pra Tati, não quero ter que usar o nebulizador de novo.
– Tô atrasado pro trabalho, podemos conversar mais tarde?
– Vim só comunicar que hoje damos início à pintura do interior do edifício, só pro caso de algum desavisado encostar na tinta fresca...
– Alcides, querido... precisa verificar se essa tinta é anti-alérgica, lembra da última vez que pintamos os apartamento? Você não se sentiu muito bem. Hoje existem aquelas tintas bastante inócuas. Custam um pouco mais, mas é sempre bom prevenir que remediar... Ah, volte aqui, não vai passar o protetor solar? Com um sol desses, essas manchinhas que você tem nas mãos podem virar uma coisa ruim. Um melanoma, Deus o livre! Cadê aqueles seus óculos escuros com proteção UVA?
Lembro-me ainda dos bombeiros no térreo esperando que Alcides se acalmasse e descesse do teto do prédio. Ele jurava que era um pássaro livre e saudável e queria voar a todo custo. Acariciava as penas imaginárias que lhe cresciam nos braços e dizia que queria fazer um longo vôo rumo ao caribe, onde não teria que tomar seu leitinho de soja e passaria o dia a se locupletar de gordura, álcool e cigarros mentolados.
– Desce daí, Alcides! Pelo amor de Deus!! Vai traumatizar as crianças... Desce que eu te dou aquele calmante e você dorme até amanhã, querido.
Nunca me esquecerei da mítica cena do Alcides cantando “Eu vou pra Marancagalha, eu vou, comprar meu chapéu de palha , eu vou...Se Amália não quiser ir eu vou só, eu vou só.....” E ao dar uma pirueta mais ousada escorregou e foi salvo por um tris quando a sua camisa ficou enganchada na antena de televisão. Surtou, ficou lelé, pinéu, não agüentou as “delícias” de manter uma vida saudável.
Fechei minha revista de saúde. Era mensal, uma nota preta ao ano pra ter receitas de brócolis e aspargos grelhados e dicas de como fazer jogging. Ela me dizia o quanto era venenoso um copo de refrigerante e o dano que eu mesma causaria ao meu coração comendo um habúrguer com fritas, principalmente aquele do Mc’Donalds (leia-se os mais gostosos da face da terra). Seria o editor algum comunista arruaceiro querendo abalar os sólidos alicerces dessa mega corporação capitalista, templo dos goumerts sedentários e obesos que há anos preparam as delícias mais disputadas do mundo?
No outro dia lá estava eu de novo na fila do banco, com o boleto nas mãos, esperando que as dezenove pessoas na minha frente fossem atendidas para que eu pudesse pagar a mensalidade da minha revista. Bem, de acordo com a fabulosa tabela elaborada por nutricionistas e especialistas em educação física, uma hora em pé consumiria mais ou menos 130 calorias, o equivalente a um prato de espaguete ao sugo. E se eu comesse o espaguete em pé?
Desisti da fila. Saí do banco sem olhar para trás. Lembrei-me mais uma vez do Alcides que foi passar um mês numa clínica de repouso. Sorri sozinha. Já havia passado meia hora desde que eu havia tomado um suco de cenoura com espinafre no café da manhã. Segundo os doutores já estava na hora de escovar os dentes. Abri a bolsa guardei meu boleto ainda em aberto. Sorri novamente e entrei num botequim.
O rapaz do balcão me trouxe um café-com-leite com bastante açúcar, um misto quente com queijo amarelo e presunto de porco com capa de gordura e uma fatia de torta com bastante leite consensado. Vi estrelas. Um momento de gozo absoluto, onde cada textura era sentida pelas minhas papilas gustativas. Um néctar celestial, nem mesmo os deuses do Olimpo poderiam imaginar o quão eram soberbos aqueles manjares. Finalizei tudo com um grande gole de coca-cola, bem gelada, negra e cáustica. Sorri de novo sem saber porque. Joguei fora o último exemplar da minha revista de saúde e bem-estar. Eu queria estar bem comigo mesma, não queria terminar como o Alcides. Queria me cuidar e não me anular. Acho que mesmo se eu comer uma fatia de bolo e beber uma coca-cola não será o maior dos pecados e mesmo se eu escovar os dentes dentro de cinco minutos ou meia hora, não vai fazer diferença. E se fizer, com o dinheiro da anuidade da revista posso pagar um bom dentista.
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