Jamais serei como as folhas secas que caem mortas no chão... Voarei por entre os ciprestes e chegarei a um lugar onde talvez ninguém me encontre, não importa. Recuso-me permanecer no ponto de partida; prefiro a solidão à mesmice.

quinta-feira, setembro 01, 2011

Manuela




Eu estava longe de ser um habitué, um fã de cafés e brioches. Jamais me interessei pelos confeitos elaborados ou creme das taças fumegantes de leite com chocolate. E de repente me vi impelido a freqüentar aquele bar diariamente. Minha obsessão por aquela mulher chegara a níveis escandalosos, inaceitável à minha mente abominavelmente racional. Meu corpo não conhecia mais limites, eu não respeitava horários nem sentia mais a aspereza dos fios duros da barba que tomavam conta da minha face debilitada. Enfiei a mão no bolso do meu casaco enxofrado e tirei dali um amarrotado e velho maço de cigarros. Traguei a inebriante mistura de tabaco e alcatrão, sem filtro, como fazia nos tempos em que aquelas baforadas me davam prazer. O que restara de mim era tão cinza e vaporoso como a fumaça que saía de minha boca e da xícara que eu havia pedido. Um prosaico café, negro e amargo, trivialmente aborrecido, até a triunfal entrada de Manuela.

O saião aveludado cobria-lhe as pernas até o final dos calcanhares, deixando à mostra apenas uma pontinha de suas botas envernizadas. Ela pediu o óbvio, sua boca abriu-se da mesma maneira voluptuosa como da primeira vez em que eu a vira, com todos os seus dentes perolados enfeitando seu sorriso incerto.

– “Um café e um brioche por favor”

E degustou ali mesmo no balcão, sem dar satisfação à ninguém, enquanto admirava a chuva cair do lado de fora da grande porta de vidro. E foi a incerteza daquele sorriso, a minha indecisão em julgar a beleza de Manuela que me acendeu novamente a chama na alma. Nada de rompantes apaixonados,de arroubos românticos; continuo desacreditando no amor, mas acreditei que aquela mulher fosse diferente de todas as outras. 
Ela pertencia a um seleto grupo de pessoas que tem algo de especial, uma certa relutância em fazer parte da rotina do mundo. Eu poderia imaginá-la cometendo os atos mais insólitos como tomar banho de mar de madrugada ou fazer amor em público, apenas pelo gosto do proibido.

Senti meu estômago arder ao contato da bebida quente. Pelos meus cálculos eu não comia nada há dois dias e nem sentia necessidade de me alimentar. Pedi outro café, desta vez accompanhado com um copo de rum. Não queria admirar aquela mulher a seco. Pude sentir o vento se deslocar quando ela bateu o saião e dirigiu-se à mesa vizinha à minha. Aproximou-se com aquele andar que eu já tinha visto antes, enigmático e cadenciado, numa mansidão morna de quem mede os próprios passos.

Abriu o jornal e concentrada fixou os olhos nas linhas do periódico. Mas a quem ela queria enganar? Talvez eu fosse o único, com toda a amargura que roía as minhas entranhas , eu sabia que no fundo os olhos de Manuela haviam escolhido a caso uma notícia qualquer, provavelmente a propaganda de algum imóvel ou até mesmo o obituário. Aquele ar descompromissado de quem não deve nada à ninguém não combinava com ela e aquilo atiçava a minha curiosidade. De alguma forma deduzi que ela não era sincera nem consigo mesma, como se precisasse urgentemente de ilusões para continuar vivendo. Aquela criatura era como eu. Nem me lembro ao certo o dia em que nasci, nem qual é o meu signo, mas tenho certeza que ele não combina com a realidade. Até mesmo as panelas do mais nobre aço se salpicam de ferrugem com o tempo, mesmo que superficialmente. Manuela tinha algum segredo sujo guardado sob aquele verniz de boneca de porcelana. Não que me importasse, todos temos segredo; apenas me excitava, sempre que isso fosse possível.

Dispensei o cafè e pedi outro copo de rum, num grande gole tomei a bebida e um pouco de coragem e me aproximei dela. Não sabia ao certo como meu gesto seria recebido, certamente me rechaçaria, me chamaria de louco, de velho decadente. Mas não importava, eu não tinha nada a perder, havia chegado a um ponto da minha vida no qual a vergonha é um sentimento insípido e incolor; como beber água quando se deseja um copo de uísque, não me causava o menor efeito.
Manuela não desgrudou do jornal, sua expressão compenetrada convecia a todos menos a mim.

–Posso?

–Hã? Ah sim...deduzo que queira se sentar... – Enquanto ela fechava o jornal e me flechava aquelas palavras de modo tão frio eu engolia em seco e sentia ainda o arder da bebida em meu esôfago castigado. – Pois sente-se, não posso proibí-lo, estamos num lugar público.

Só uma mulher especial responderia assim a um desconhecido. Manuela não era uma mulher qualquer. Era a perfeição em pessoa.

–Acompanha-me no café?

–Na verdade preferiria um uísque.

–Forte para se tomar às nove da manhã. – Ela sorria enquanto me criticava e era linda naquele sorriso.

–Para mim ainda é fim de noite, costumo ir para a cama só ao meio-dia .

–Interessante. – Ela cruzou as pernas lentamente e admirou a chuva mais uma vez – Tentei adotar tais costumes notívagos, mas não consegui me adaptar. Questão de hábito.

Achou graça nos meus hábitos de cavernícola e sorrindo tirou um cigarro da bolsa e me ofereceu.

–Quem disse que eu fumo?

–Um fumante reconhece outro quando o vê.

–Admiro sua perspicácia, não é muito comum hoje em dia.

–Dizem que quando nos faltam certas qualidades procuramos substituí-las por outras.

– Não creio que você seja priva de uma qualidade maior ou mais importante que a perspicácia. Parece-me muito virtuosa.

Manuela sorriu e aceitou a cafonice do meu galanteio como se fosse um fino poema de amor. 

E enquanto ela massageava o meu ouvido com sua risada harmoniosa, eu tentava tirar os pelos do meu casaco mal ajambrado. Fazia anos que eu não me preocupava com a minha aparência.

– Chamo-me Manuela e você?

–Pode me chamar de Teo. Esse velho rabugento e descuidado que vos fala!

–Os indumentos de uma pessoa dizem muito sobre ela.

Manuela era assim, direta e desmedida. Sorri um sorriso desajeitado e quando pensei que entabularíamos uma conversa senti a aproximação de um rapaz, alto e insuspeitável.

–Ei Manu!!! Me acompanha num café?

Ela sorriu e segurando o amigo pela cintura olhou-me fixamente.

–Hoje não, Carlito, encontrei meu velho amigo aqui. Fica para a próxima.

E para meu espanto eles se despediram com um terno beijo na boca.

– Não me julgue... – Pediu-me receosa.

–Não creio que você tenha medo do julgamento alheio, assim como não acho que sejamos amigos.

–Não, não somos. Mas poderemos ser...

Pedia-me para não ser julgada enquanto oferecia seu sorriso sincero a um estranho decrépito como eu.

“Não somos, mas poderemos ser...

Aquilo me excitava e eu a desejava, como se ainda fosse possível na minha vergonhosa e ridícula situação. O meu cérebro despia o corpo de Manuela lentamente, beijando-lhe o pescoço longilíneo e sua boca cheia de dentes. Desejei ter novamente dezoito anos e odiei meus malditos cabelos brancos. Mas ela confessou ter atração por homens mais maduros e não teve escrúpulos em receber-me em seu pequeno apartamento. As paredes brancas do ambiente milimetricamente arrumado não se envengonharam perante o descabido enlace íntimo entre Manuela e eu. Deixou cair o saião aos meus pés numa sofreguidão de dar dó. Ela me desejava e não se envergonhava em demonstrar. Fechei os olhos e gelei, entrevendo o vexame que se seguiria. Mas em meio ao breu do quarto senti um baque duro no chão.

Manuela desfez-se da sua perna postiça, fazendo-me tocar o que lhe havia restado do antigo membro direito. Não sei descrever se o que eu senti foi alívio ou surpresa. O fato é que eu estava em choque. Mas o que era uma perna mecânica perante o apelido que ganhei nos treinamentos militares? Manuela não permitiu que eu repetisse a minha dolorosa alcunha. Ela ouviu de meus lábios a palavra “eunuco” pela primeira e última vez. A falta da minha virilidade acendeu um brilho nos olhos daquela mulher. Abraçou-me como se eu fosse a mais preciosa da criaturas na face da terra. Beijei-a e naquele beijo percebi o quão era difícil para uma mulher sozinha conviver com aquele defeito. Senti na pele o seu medo em perder a outra perna e talvez a própria vida, temendo que aquela dooença ruim pudesse voltar um dia. Imaginei que o verniz com o qual ela havia coberto a sua personalidade era uma forma de se proteger do mundo real.
A simpática e sociável Manuela estava só, e não gostava de ler as notícias dos jornais. Dividia sua mesa com qualquer um, bebia do café dos homens mais galantes, mas no final da tarde voltava para sua casa perfeita onde pousava a sua prótese como um monumento à solidão.

Não tínhamos mais nada a dizer um ao outro. Não creio que a nossa história pudesse ter um final feliz. Decidimos não medir nossa amizade pelos meios tradicionais. Nada de começo, meio ou fim. Para nós não havia o que começar ou terminar. Não sabíamos nada do futuro, tínhamos somente um passado doloroso e um presente de mentiras. Decidimos não fazer planos. Nos encontrávamos todos os dias num bar qualquer, como se fosse a primeira vez, ela me sorria e me convidava a acompanhá-la num café. Após muitas lutas comigo mesmo e alguns copos de uísque aconselhei que ela fosse para casa com seu amigo Carlito. 

E eu esperava ferrenhamente que aquele rapaz saudável fizesse com ela o que eu não podia mais fazer. Pude sentir o calor de suas lágrimas que ainda não haviam caído e tive a certeza de que ela não haveria coragem de se deitar com qualquer outro homem que não fosse eu.

Eu não gostava de café, nem era fã de croissants. Mas continuei a degustá-los todos os dias, como um náufrago que se apóia a um destroço. Eles me lembravam Manuela e me deixavam na boca o gosto do único beijo trocado entre nós. Eu a amava e queria somente que ela fosse feliz.





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